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Sentimento de fúria ou desprezo, geralmente provocado por algo considerado ofensivo, injusto ou incorrecto. =
AGASTAMENTO"
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Hoje, mal coloquei o pé na rua, deparei-me com o seguinte cenário: um Sr. de 70 e muitos anos, fato cinzento, camisa branca, olho muito azul, pele clarinha, figura magra e trémula, tropeça ao subir para o passeio e cai, sem qualquer amparo, com a cara no chão. Ficou imediatamente a sangrar imenso do nariz e da boca, visivelmente atordoado com o impacto da queda, um pouco confuso, mas ainda assim levou a mão ao bolso e tirou um lenço, de pano, impecavelmente lavado e dobrado, ao rosto. O sangue escorria para a calçada, ele tentava levantar-se mas não conseguia, entre tonturas e tremores. Ao lado dele passavam várias pessoas, atarefadas, atrasadas para os trabalhos, para a apanhar os transportes, a pensar nas suas vidas, fixavam o olhar no Sr, que, com esforço, conseguiu levantar-se. Tudo isto aconteceu em cerca de 30 segundos (o tempo que demorei a sair do prédio, até chegar ao local no passeio onde ele se encontrava). Durante todo esse tempo, e embora fosse rara a pessoa que não reparasse no que estava a acontecer e por isso abrandava para olhar, mas NINGUÉM foi capaz de se dirigir a ele para o ajudar. Ninguém. Ninguém lhe perguntou o que tinha acontecido. Se estava bem, consciente. Ninguém pensou sequer em chamar uma ambulância, dizer-lhe que se sentasse, dar-lhe água, outro lenço para ajudar a parar o sangue. Nada. Ninguém parou durante 10 segundos da sua atarefada manhã para auxiliar um desconhecido. Assim que consegui chegar até ele perguntei-lhe como se chamava - "António. Tropecei no passeio... que chatice!"- Ofereci-me para ir com ele ao hospital mas não quis. Disse que morava perto e só queria ir para casa lavar a cara. Expliquei-lhe que tinha ferimentos graves no nariz, que era melhor ser visto por um médico. Insistiu que só queria ir para casa." Acompanhei-o então. Tremia e estava envergonhado. Tinha tropeçado, caído no meio da rua, estava magoado, com dores, mas acima de tudo tinha vergonha "porque estava velho e caiu ali." Deixei-o na porta do prédio, mas antes perguntei se tinha alguém em casa. Respondeu um vago "Sim...". Não sei se teria, mas mais também não podia fazer mais.
Segui o meu caminho de coração apertado, estômago às voltas, não contive as lágrimas e chorei. De pena, de raiva e indignação. Não entendo como é que nos dias que correm, onde toda a gente se revolta e indigna por tudo e por nada no Facebook, onde as ondas de manifesto sobre os penteados do Cristiano Ronaldo ou o nome do filho do Kapinha se tornam virais, onde tanta gente apela aos maus tratos dos animais com fotos chocantes, ou de crianças com doenças raras e fotos igualmente perturbadoras, mas depois, no mundo real, na rua, na calçada de um passeio, quando uma coisa destas acontece, ninguém vê, ninguém quer saber, ninguém está para se chatear e estender a mão a quem precisa. A quem está ali, de carne e osso, a precisar de ajuda.
Fico indignada com a passividade, e ao mesmo tempo com o tempo que se perde com indignação alheia, de coisas que não interessam nem ao Menino Jesus, com a vida dos outros, com fait-divers.
O que aconteceu hoje mudou o meu dia. Fez-me pensar em como não custa nada estarmos mais atentos ao que nos rodeia de facto, e o tempo que se gasta com coisas tão fúteis e vazias em mundos virtuais paralelos.
Espero que o Sr. António tivesse, de facto, alguém em casa que o tenha ajudado. Espero que este episódio me sirva de lição para estar atenta e ajudar, sempre que possível, quem precisar, nas coisas mais pequeninas, que nos passam tão ao lado. Espero que quem me ler sinta essa mesma consciência de que basta um pequeno gesto para mudar, melhorar, reconfortar o dia de alguém.